Escrito por Sérgio Rodrigues
Na plateia do debate na Bienal do Livro de Fortaleza,
segunda-feira (17), a jovem estudante de jornalismo pede a palavra para se
queixar da inapetência das novas gerações para a leitura de textos com mais de
cinco linhas, algo que ela atribui à cultura digital. Onde vamos parar?
Menos jovem, respondo que, quaisquer que sejam os problemas atuais de
leitura e concentração, convém ter cuidado com visões apocalípticas.
O meio eletrônico dominante na minha infância era ágrafo. Quando a
televisão reinava, ninguém –excetuados compromissos escolares ou profissionais–
precisava ler ou escrever absolutamente nada.
O mundo era cada vez mais audiovisual. Quem negaria naquele momento que a
palavra escrita, se não estava com os dias contados, teria uma triste
sobrevivência artificial em santuários frequentados por gatos pingados?
A internet e as mensagens de texto revalorizaram a escrita de forma
surpreendente e cabal. Claro, não se trata mais da velha escrita, os códigos
são outros. Mas qualquer visão de futuro que não levar isso em conta será
incompleta.
Mais uma vez, a perspectiva histórica é a melhor vacina contra uma falácia
que o senso comum vive tentando nos impingir: o da decadência irremediável da
língua e da escrita.
Parece intuitivo. Antes havia civilização, agora estamos à beira da
barbárie. Tínhamos o paraíso; caímos em desgraça. Trata-se de um mecanismo
psicológico imemorial, com ramificações religiosas. A catástrofe atinge todo
mundo, mas quem a denuncia sente algum conforto moral.
Em seu livro "Guia de Escrita - Como Conceber um Texto com Clareza,
Precisão e Elegância" (editora Contexto), o linguista e psicólogo Steven
Pinker rebobina de forma deliciosa a história das visões apocalípticas sobre o
inglês.
Poderia partir de hoje, mas opta por começar em 1978 ("milhões de
asneiras e descuidos de gramática, sintaxe, fraseologia, metáfora, lógica e
senso comum") e recuar até 1478 ("nossa língua... difere de longe
daquela que era falada e usada quando eu nasci", escreveu um tipógrafo).
Pinker ainda vai além. Chega até milhares de anos atrás ao afirmar que
"algumas das tabuletas decifradas do sumério antigo incluem queixas sobre
a deterioração da habilidade de escrita dos jovens". O sumério é a língua
escrita mais antiga de que se tem notícia.
Conclusão do linguista: "Na realidade, o pânico moral sobre o
declínio da escrita pode ser tão antigo quanto a própria escrita". Seria
difícil expor de modo mais claro a vaziez do bordão preferido dos
apocalípticos: "Antigamente, havia respeito às regras".
O fato é que as "regras" da norma culta –como as de todas as
variedades da língua– mudam sem parar, lentamente, mas com efeitos dramáticos a
longo prazo. Nossa eterna ladainha de decadência é um espetáculo tão risível
quanto o de um cachorro correndo atrás do próprio rabo.
Reconhecer isso não significa negar os problemas e desafios ligados à
escrita e à leitura. Também não quer dizer abandonar o apreço pela língua
elegante, literária, cultivada –como Pinker não abandona.
O Brasil precisa de mais educação, não de menos. Só não vale suspirar pelo
tempo em que as bacharelices afetadas do Hino Nacional passavam por bom estilo
e os analfabetos eram 80% da população.
[Fonte: www.folha.com.br]
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